Usucapião por abandono familiar

Leyla Yurtsever, advogada, articulista e professora

 

Relações familiares se rompem todos os dias. Essa é uma realidade inescapável, um caminho que muitos fazem. Tema de livros, filmes e musicado ao extremo, o abandono alimenta uma infinidade de sofrimentos. A licença poética avisa que, por vezes, “você virou saudade aqui dentro de casa. Se eu te chamo pro colchão, você foge pra sala. E nem se importa mais saber o que eu sinto. Poucos metros quadrados, virou um labirinto (grifo nosso).” Vê-se que abandono, nem sempre requer distância, pode ocorrer na proximidade, de forma material ou afetiva.

Sofrência à parte, a saída de um dos cônjuges do lar também é alvo da legislação jurídica. Tal qual uma dança ensaiada, a legislação estabelece um rito de procedimentos que devem ser observados na intencionalidade de resguardar o melhor interesse das partes envolvidas.

Em 2011 veio a lume a Lei 12.424, estabelecendo o Usucapião Familiar ou mais apropriadamente Usucapião Especial Urbana por Abandono do Lar Conjugal. Segundo a referida Lei, aquele que exercer por 2 anos seguidos a posse de imóvel de até 250 m2, o qual era dividido com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou, lhe será dado domínio integral.

Leis não estão desassociadas da realidade. E está não poderia ser diferente. Sua emergência deu-se por ocasião do Programa Minha Casa, Minha Vida que visava assegurar o direito social a moradia, conforme estabelece o artigo 6º da Constituição Federal. Ocorre que, um padrão de comportamento do público alvo deste programa revelou que muitas famílias eram mantidas somente pela figura feminina, visto que o homem, por vezes, abandonava o lar, fosse por trabalho ou para constituir outro núcleo familiar. Para evitar abusos e explorações, foi estabelecido que o título de propriedade do imóvel adquirido pelo Programa ficaria no nome da mulher, reforçado ainda pelo dispositivo do usucapião por abandono de lar.

Não resta dúvida que esta Lei trouxe um socorro em situações concretas de desamparo material no seio familiar. No entanto, um ponto controverso nesta Lei era a correta interpretação do que seria “abandono do lar”. A realidade de algumas famílias, por vezes, exige que um dos cônjuges se ausentasse do lar por força de trabalho, internação por motivo de saúde e outros. Se considerados de maneira fria, estes seriam motivos para requerer o usucapião familiar. Por outro lado, a falta de esclarecimento do termo poderia obrigar os cônjuges a uma convivência, por vezes, já desgastada pelos conflitos, mas já efetivada pela separação de corpos, somente pelo temor da perda de posse de um imóvel.

Assim é que, desde 2014, foi esclarecido que o termo abandono do lar deveria ser interpretado como abandono familiar. Mais do que a saída física do imóvel, este se configuraria como o desamparo familiar, a desassistência na prestação de alimentos, a não contribuição para as despesas do lar e até a falta de manutenção dos laços afetivos. Mais adequada aos tempos modernos, esta interpretação impõe aos cônjuges deveres que devem ser exercidos para a manutenção familiar. Por outro ângulo, o abandono familiar pode ocorrer mesmo estando sob o mesmo teto.

Ressalte-se ainda que, a tal medida não intenciona apurar um culpado pelo término da relação, mas apenas minimizar os danos decorrentes desta situação. O abalo psicológico, nestes casos, por sim, já é suficiente para requerer um amparo legal, não podendo se acrescer ainda danos materiais. Que os abandonos afetivos ou materiais fiquem apenas como enredo de uma sofrência musical.

 

 

 

Leyla Yurtsever é advogada, articulista e professora. Sócia e fundadora do escritório jurídico Leyla Yurtsever Advogados Associados. Graduada em Direito. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pelo Ciesa; Direito Penal e Processo Penal pela UFAM; e em Cidadania do Século XXI, Direito Penal e Sociedade Global pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu – IDPEE.É Mestre em Gestão e Auditoria Ambiental pela Universidad de Leon (2006) – Espanha. Doutoranda em Direito pela Universidade Católica de Santa – Fé – UCSF. Foi coordenadora do Curso de Especialização em Direito Eleitoral da Universidade do Estado do Amazonas e do Núcleo de Prática Jurídica, neste último atua ainda como professora. Palestrante convida da Escola Judiciária Eleitoral – EJE/ AM. Coordenou e lecionou no Escritório Jurídico da UNIP e no Núcleo de Advocacia Voluntária – NAV – da Uniniltonlins. Professora da Universidade Federal do Amazonas e subcoordenadora do Núcleo de Prática Jurídica da UFAM/Direito. Foi professora do curso de Segurança Pública da UEA e a primeira mulher a ser professora de uma disciplina militar denominada “Fundamentos Políticos Profissionais” no Comando-geral da Polícia Militar. Atualmente é Assessora Jurídica Institucional da Polícia Militar do Amazonas.

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