Os Quartos do Coração: POLIAMOR

Leyla Yurtsever, advogada, articulista e professora

A genialidade de Gabriel García Marquez é inquestionável. Você, ainda que sem saber, já deve ter saboreado de seus escritos. Digo saborear por que García Marquez não se lê. Seu realismo provoca todas as sensações e uma experiência sensorial que alcança todos os sentidos. Em sua obra “o amor em tempos de cólera” ele retrata o amor vivido entre Florentino e Firmina, quase sem nenhum contato. Em determinado momento García Marquez expõe as vísceras desse relacionamento:
“Com ela aprendeu Florentino Ariza o que já padecera muitas vezes sem saber: pode-se estar apaixonado por várias pessoas ao mesmo tempo, por todas com a mesma dor, sem trair nenhuma. Solitário entre a multidão do cais, dissera a si mesmo com um toque de raiva: ‘O coração tem mais quartos que uma pensão de putas.” [grifos meu]
Pobre Florentino, perdeu quase 53 anos para perceber que o coração é casa de muitos cômodos e todos ocupados por um hóspede diferente.
Com poucas exceções, todos ouvimos algumas regras inquestionáveis. Família é formada pela união de homem e mulher. Não é possível amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo pois, este somente ocorre entre duas pessoas. Mas, o cotidiano tem questionado estas e outras verdades monolíticas.
Romances literários relidos por conceitos atuais rompem com o determinismo das relações e propõe novas formas de experienciar os sentimentos. O amor casto, virginal, puritano e controlado do século XVI que obedecia às conveniências morais e condenava seus participantes a uma infelicidade ensaiada é substituído pela liberdade de escolha.
Assim é que a tradicional monogamia entre duas pessoas tem sido desafiada por novos modelos, com especial destaque a poliafetividade, rompendo com a imagem estática de família. Relações poliafetivas não são recentes, mas sua exposição e reivindicação por reconhecimento sim.
Por entender que padrões monogâmicos não atendem a todos, Morning Glory Zell-Ravenheart cunhou o neologismo poliamor no ensaio “Um buquê de amantes”, onde caracterizava a possibilidade de um relacionamento não-monogâmico consensual, ético e responsável.
No Brasil, não existe jurisprudência sobre o poliamor. Em 2012, em Tupã no Estado de São Paulo lavrou-se uma Escritura Pública Declaratória de União Poliafetiva de união estável entre três pessoas, sendo seguida por outras. Contudo, em 2016 o Conselho Nacional de Justiça, atendendo a pedido da Associação de Direito de Família e das Sucessões resolveu suspender novas escrituras declaratórias de uniões poliafetivas nos cartórios brasileiros.
Os defensores da poliafetividade afirmam que a Constituição não nega proteção a união de mais de duas pessoas, ainda que blinde um modelo romântico e cinematográfico de par. Ademais, família é uma comunidade de afeto, o que também caracteriza a poliafetividade. Mas, não é a falta de normativa que impede sua prática. Em geral, a legislação é posteriori a realidade e não antecipatória dessa.
Vínculos amorosos concomitantes expõe uma natureza humana poliafetiva, ainda que resolva os problemas de relacionamentos. Ademais, este também não incentiva, defende traições, mas apenas retirou do armário um modelo clandestino de relação. Muitos optam pela poliafetividade para evitar mentir para si e seus amores.
Poliafetividade, longe do equívoco geral, não se baseia em experiência sexual intensa. A libido tende ao equilíbrio em qualquer relacionamento, não importa se com uma ou duas pessoas ou mesmo que atinja os números de Salomão. Assim, qualquer embriaguez tentacular é passageira.
Também não se constitui em relacionamentos abertos exclusivamente. Existem modelos onde prevalece a polifidelidade, a monogamia de uma das partes, as relações interconectadas entre os pares e outros acordos geométricos e hierárquicos. São modelos tão diversos onde cada parceiro assume determina posição, o que exige fôlego e paciência.
Disposição para lidar com a diversidade também exige tempo para diálogo, bem como abrir mão de ciúmes e outros sentimentos de posse. Isso impõe a necessidade de estabelecer uma agenda de tempo igual as partes, sem o perigo de criar em solo doméstico pequenas facções. É a volta da rotina do caderninho.
Os romances literários terminam no casamento, em silêncio sobre os dramas do relacionamento. Talvez, por que monogâmicos ou poliafetivos, já tem sua punição. Atribuir maior peso é sadismo. Mas este, como todos sabem, é outro jogo entre quatro paredes.

Leyla Yurtsever é advogada, articulista e professora. Sócia e fundadora do escritório jurídico Leyla Yurtsever Advogados Associados. Graduada em Direito. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pelo Ciesa; e em Direito Penal e Processo Penal pela UFAM. É Mestre em Gestão e Auditoria Ambiental pela Universidad de Leon (2006) – Espanha. Doutoranda em Direito pela Universidade Católica de Santa – Fé – UCSF. Foi coordenadora do Curso de Especialização em Direito Eleitoral da Universidade do Estado do Amazonas e do Núcleo de Prática Jurídica, neste último atua ainda como professora. Palestrante convida da Escola Judiciária Eleitoral – EJE/ AM. Coordenou e lecionou no Escritório Jurídico da UNIP e no Núcleo de Advocacia Voluntária – NAV – da Uniniltonlins. Professora da Universidade Federal do Amazonas e subcoordenadora do Núcleo de Prática Jurídica da UFAM/Direito. Foi professora do curso de Segurança Pública da UEA e a primeira mulher a ser professora de uma disciplina militar denominada “Fundamentos Políticos Profissionais” no Comando-geral da Polícia Militar. Atualmente é Assessora Jurídica Institucional da Polícia Militar do Amazonas.

Assessoria EmVisão

Compartilhe

Artigos Relacionados