“Fala Beiradão”, publicação desenvolvida dentro de programa de educação da Fundação Amazonas Sustentável (FAS), reúne mais de 60 palavras oriundas do vocabulário de comunidades no interior do Estado
Menino, já deu comida para as galinhas?
– In já mãe!
– Mas é bacabeiro heim!
Você conseguiu entender o diálogo acima? E o significado das expressões “in já”* ou “bacabeiro”*? Não? Talvez só quem vive, convive ou frequenta os beiradões dos rios da Amazônia o dominem! São exemplos do vocabulário da população ribeirinha do Amazonas e que agora estão reunidos num livro, o “Fala Beiradão”, desenvolvido pela ONG Fundação Amazonas Sustentável (FAS) e pelo Instituto Altair Martins (Iamar) e que foi indicado a um prêmio nacional de patrimônio cultural, o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, organizado pelo Iphan, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Puro exemplo do rico léxico dos “caboclos” do Amazonas, o conjunto de palavras organizado no livro foi coletado durante cerca de um ano, por meio de visitas feitas às comunidades ribeirinhas dentro das ações do Programa de Educação e Saúde (PES) da FAS. Ainda não publicado, o livro não é apenas um dicionário, mas sim um atlas. São 180 páginas onde é possível encontrar 60 termos e expressões faladas pelos ribeirinhos, significados e exemplos de uso, e também fotografias, mapas e informações socioambientais sobre as regiões e as comunidades onde vivem essas populações, a fauna e flora do lugar, além de ilustrações produzidas por crianças e adolescentes atendidos pela ONG.
O livro “Fala Beiradão” tem a assinatura de 150 pessoas, 150 crianças, adolescentes e adultos atendidos pelo Projeto de Incentivo à Leitura e Escrita, o “Incenturita”. A organização é do biólogo e arte-educador Emerson Pontes, técnico do Programa de Educação e Saúde. “Começamos a circular nas comunidades já com esse olhar, com direcionamento de fazer registro desses termos e expressões faladas por eles, muitas inéditas. Reunimos todas as pessoas numa roda e perguntamos ‘o que você diz e fala que causa estranheza?’ E eles falavam. Alguns riam das expressões ditas pelos outros quando não conheciam e era um momento interessante de partilha de saberes”, explicou Pontes.
Os 150 autores do livro vivem espalhados em 40 comunidades ribeirinhas situadas em quatro Unidades de Conservação (UC) onde a FAS atua: a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) de Anamã, que abrange os municípios de Codajás, Coari, Maraã e Barcelos; a RDS do Juma, que abrange o município de Novo Aripuanã; a RDS Rio Negro, que abarca Iranduba, Manacapuru e Novo Airão; e a Área de Preservação Ambiental (APA) Rio Negro, situada entre os territórios de Manaus, Presidente Figueiredo e Novo Airão.
Em todas essas localidades a FAS promove conservação ambiental, desenvolvimento sustentável e melhoria de qualidade de vida de povos tradicionais, incluindo ações de educação. “O saber tradicional detém uma série de vocabulários riquíssimos frutos de uma extensa diversidade linguística do povo. Por meio desse projeto a gente quer valorizar esse saber tradicional e fazer com que as comunidades não só se reconheçam como detentoras desse patrimônio como também se tornem promotoras do desenvolvimento sustentável e da conservação da floresta. Ficaremos muito felizes se tudo isso for reconhecido pelo Iphan”, ressaltou Virgílio Viana, superintendente-geral da FAS.
Diferentes expressões
A imensidão do Amazonas e a distância geográfica entre as comunidades foram, inclusive, percebidas durante a coleta dos diferentes termos e expressões para o livro. Segundo Emerson Pontes, algumas palavras eram de uso exclusivo do léxico de determinadas populações, ou seja, desconhecidas por outras comunidades situadas há algumas horas de distância. “Há uma grande riqueza sociolinguística entre e dentro dessas comunidades, oriunda de toda a matriz linguística da Amazônia, de origem indígena, portuguesa, quilombola e até nordestina. Tem comunidade com uma hora de barco que não conhece os termos falados ‘lá de cima’. E essas diferenças ficaram acentuadas no livro”.
Uma das principais referências para a elaboração do livro “Fala Beiradão”, inclusive, foi a obra do escritor amazonense Sérgio Freire, o “Amazonês”, de 2012, que também reúne termos e expressões usadas pelos amazonenses, mas principalmente aqueles falados na capital, Manaus, e nas sedes dos municípios. “A referência foi sim o ‘Amazonês’ de Sérgio Freire, mas o ‘Fala Beiradão’ é diferente por alcançar uma escala mais profunda, as comunidades ribeirinhas. Tem muitos termos já citados no ‘Amazonês’, mas tem outros inéditos e ainda não cobertos pela escala geográfica. Imergimos no vocabulário dessa Amazônia profunda”, disse Emerson.
Outra característica de destaque é que o livro “Fala Beiradão” é a primeira obra com termos e expressões inteiramente escrita por jovens ribeirinhos. “Isso é inédito. Isso tudo já existe ali e o trabalho se propôs a olhar para essa riqueza e esse patrimônio cultural tão autêntico e espontâneo que é a linguagem, que revela a identidade desses lugares, que tem relação com a autoestima deles e que é do jeito que elas e eles falam, sem precisar a se adequar a qualquer espaço”, disse. “Para Manaus, as cidades ou qualquer outro espaço que não seja aquele, é importante aprender sobre como se fala lá, é um processo de conhecer o próprio povo e descolonizar certas práticas. Quando eu aprendo mais sobre o meu espaço, eu passo a também valorizar”.
‘Fala Beiradão’
Com 180 páginas, o livro “Fala Beiradão” é editorado pela FAS e tem assinatura de 150 pessoas. É organizado por Emerson Pontes, tem coordenação geral de Virgílio Viana e prefácio do escritor amazonense Jan Santos, autor de diversas obras focadas em fantasia e lendas amazônicas. As fotografias são de Dirce Quintino, Bruno Kelly, Keila Serruya, Marina Amazonas e Emerson Pontes. A capa e o projeto gráfico são do designer Bosco Leite e as ilustrações de crianças e adolescentes ribeirinhos. Instituto Iamar, Bradesco, Samsung, Fundo Amazônia e Coca-Cola são mantenedores da publicação.
Prêmio Rodrigo 2019
O Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade 2019 é a maior premiação do patrimônio cultural brasileiro e é organizado do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em Brasília. Ao todo, 323 projetos foram inscritos em todo país e 99 passaram para última fase. O resultado final do concurso deverá ser divulgado até 5 de setembro. Cada premiado receberá um valor de R$ 30 mil. O nome do prêmio faz referência ao advogado, jornalista e escritor brasileiro que comandou o Iphan e foi responsável por importantes medidas para preservar o patrimônio histórico e cultural do Brasil enquanto esteve à frente do órgão.
Educação e Saúde
O Programa de Educação e Saúde da FAS tem objetivo de promover o direito à educação, saúde e cidadania em comunidades ribeirinhas situadas em Unidades de Conservação do Amazonas e implementa um conjunto de projetos e iniciativas para promover o acesso a uma educação de qualidade, à formação profissionalizante e à atenção básica de saúde nas UCs. O programa tem apoio da Samsung Brasil e do Bradesco.
*“In já” é uma expressão usada para dizer que algo já foi feito.
*“Bacabeiro” significa pessoa mentirosa.
Foto destaque: Foto: Antonio Cruz / Agência Brasil/divulgação
Fonte: http://fas-amazonas.org