Isolamento escancara outros tipos de violência doméstica

Se por um lado o confinamento realizado para conter a pandemia do novo coronavírus ajudou a evitar maior propagação da covid-19 no Brasil, por outro, trouxe como consequência o aumento da violência doméstica. A alta do feminicídio comprova que essa pode ser considerada como mais uma grave sequela da quarentena para o País. No entanto, o perigo nem sempre assume faces perceptíveis, como a agressão física ou o assassinato de mulheres. “Violências invisíveis” se intensificam nesse período e abrem precedentes para a subnotificação dos casos.

“Agora fica mais fácil de localizar o autor da violência e fica menos possível acreditar que a mulher caiu ou bateu com a cabeça na maçaneta. Por isso, os autores de violência estão investindo mais em violência psicológica, moral, sexual e patrimonial”, analisa a vice-presidente do Instituto Maria da Penha, Regina Célia Barbosa.

A organização, que presta serviço à mulheres vítimas de violência doméstica em Recife (PE), passou a fazer atendimentos online e estendeu o alcance para outros estados em virtude da pandemia. Regina relata que, dos casos que chegaram até o instituto, percebeu-se um aumento significativo em agressões que não sejam físicas desde abril. “De 100 casos, 80 reclamantes trazem essa questão”.

Renata Albertim, co-fundadora da startup “Mete a Colher”, que tem usado a tecnologia como aliada no combate à violência contra a mulher, conta que mais de 50% das mulheres que já eram atendidas pelo canal também relataram que o isolamento foi um fator importante para intensificar os abusos. “A violência sexual aumentou muito”, pontua.

O cenário da quarentena pode pressionar e coagir ainda mais as vítimas. Sem poder sair de casa, muitas mulheres estão trabalhando, se alimentando, vendo televisão e dormindo, neste momento, ao lado de seus agressores. Qualquer prática sexual forçada é considerada estupro, mesmo que o estuprador seja o companheiro. Além disso, outras atitudes como impedimento do uso de contraceptivos ou intimidação para abortar também se enquadram em violência sexual. “Quando a gente fala de relacionamento, a gente tende a crer que as mulheres sempre devem estar disponíveis aos seus parceiros, mas isso não é verdade”, esclarece Renata.

 

Não é só agressão física

Abusos menos “palpáveis” podem causar traumas sérios e costumam demorar mais para serem percebidos pela mulher, que muitas vezes precisa de ajuda profissional para se compreender vítima e buscar ajuda para sair da situação.

“A gente vê um efeito maior na violência psicológica, porque geralmente é um problema crônico, no qual a vítima ficou muito tempo vivenciando aquele abuso. Enquanto em um tapa você percebe a violência ali, naquele ato, quando se trata de violência psicológica e moral não é assim. A pessoa fica triste, abalada, não consegue perceber nem lidar com o problema, e esse é o risco maior”, aponta a psicóloga clinica Daniela Silveira Rozados Cepeda, que é uma das criadoras do projeto Minha Voz, dedicado ao acolhimento de mulheres que sofreram violência.

Para a economista e pesquisadora de violência de gênero Caroline Moraes, o abuso psicológico é o principal motivo para que mulheres permaneçam e não consigam se libertar de um relacionamento.

“Isso faz com que a mulher se diminua e acredite que só vai ser feliz se mantiver um relacionamento com alguém, inclusive, com o agressor. Porque ele diminui tanto ela, fala que ela não é suficiente, que ela é burra, que ela não é capaz, que não vai conseguir mais ninguém, principalmente tendo tantos filhos como ela tem, que acaba criando uma dependência emocional da vítima. Como se não bastasse, isso tudo ainda é reforçado pela sociedade patriarcal que julga essa mulher”, alerta Caroline que acredita que a dependência psicológica pode pesar mais do que a dependência financeira.

Para proteger essas mulheres, a legislação brasileira conta com a Lei Maria da Penha, que além da violência física, sexual e psicológica, prevê que vítimas de abusos morais e patrimoniais sejam amparadas por uma rede de apoio que inclui acesso à medidas protetivas, atendimento especializado pelas autoridades policiais e assistência social.

A violência moral pode se caracterizar por difamação, calúnia e injúria, como exposição da vítima à terceiros, ou acusações de traição. Já a violência patrimonial se dá quando há retenção, subtração ou destruição de bens, valores e direitos da mulher, como o controle do celular ou documentos pessoais da vítima e a suspensão da pensão dos filhos, por exemplo.

Ainda que especialistas no assunto chamem a atenção para um aumento significativo das violências que não sejam físicas durante a quarentena, pesquisas dedicadas ao tema encontram dificuldades para comprovar esse tipo de afirmação devido à subnotificação dos casos, tendo em vista que a maioria dos estudos são respaldados por registros feitos em canais oficiais de denúncia.

“Esse é um tipo de violência com características complexas, diferente de outras violências”, explica Juliana Martins, coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Publica (FBSP), que realizou pesquisas sobre o tema desde que a covid-19 tomou conta do País.

“Antes da pandemia, essas mulheres já viviam com seus agressores em situação de silêncio, seja por medo de pedir ajuda, por vergonha ou até mesmo por dificuldade de compreender que o que estão passando é uma violência. Por toda essa complexidade é que falar sobre números é delicado”, justifica.

 

Aumento da violência doméstica na pandemia

O que se sabe é que desde o início do isolamento os registros de feminicídio cresceram. De março a maio de 2020 houve uma alta de 2,2%, se comparado ao mesmo período do ano passado. As informações são do último relatório do FBSP, Violência Doméstica Durante Pandemia de Covid-19, que antes havia apontado aumento maior ainda, de 22,2%, do feminicídio na pandemia entre março e abril. “Ainda assim, não podemos dizer que a violência letal diminuiu no último mês do estudo. Porque essa informação pode significar uma piora nos registros policiais”, pondera Juliana.

Um documento elaborado pela ONU Mulheres havia previsto que, em contextos emergenciais, casos de violência doméstica sobem no mundo todo devido a maior tensão no ambiente familiar.

A convivência mais aproximada e isolada dentro dos lares, além de aumentar o risco de violência, ainda pode afetar o pedido de socorro das vítimas. O levantamento mais atual do FBSP mostra que, apesar dos casos de feminicídio terem crescido, os registros de denúncias de lesão corporal dolosa contra mulheres tiveram queda de 27,2% nos meses de março, abril e maio deste ano.

A dificuldade de conseguir denunciar é o que pode explicar a relação entre os dois dados, conforme analisa Juliana. “Quando a gente olha para os registros do levantamento, percebemos que houve uma redução de denúncias, mas os únicos números que aumentaram são os de violência letal. E isso se deve a vários fatores, como por exemplo, maior dificuldade de ir aos canais de denúncia pessoalmente.”

Mesmo com a queda de registros de denúncias de lesão corporal, as chamadas de emergência para o Ligue 190 e Ligue 180 relacionadas à violência doméstica subiram. Em abril deste ano, quando a quarentena já havia sido decretada em todos os estados brasileiros, a procura pelo serviço cresceu 37,6%.

“O que temos observado é que a violência contra mulher não diminui. Mesmo antes da pandemia, não tivemos um momento em que observamos uma queda. Isso ainda não aconteceu. E continuar em isolamento social, com essa situação de precariedade econômica, quebra de vínculos sociais e afetivos que poderiam ajudar a mulher a perceber a situação de violência só colaboram para um cenário bastante preocupante e deixa mulheres e meninas muito mais vulneráveis”, conclui Juliana.

As organizações de acolhimento às vítimas do terceiro setor confirmam a análise da coordenadora do FBSP. “No início da pandemia a gente chegou a receber em um dia o que a gente recebia em um mês”, reforça a fundadora da Nós Mulheres sobre os pedidos de socorro. O mesmo também foi observado no Instituto Maria da Penha e Mete a Colher.

“Se a gente tivesse uma estrutura de mais educação, mais informação para essas mulheres, mesmo que os serviços do Estado ainda fossem um pouco morosos, deficientes ou não tão acolhedores como deveriam ser, a mulher ainda assim os procuraria com mais frequência”, reflete Caroline, que vê a educação como a maior aliada para o combate e prevenção da violência doméstica.

 

Como denunciar

 

A Lei Maria da Penha prevê que outros quatro tipos de violência, além da agressão, sejam considerados crime

 

Os casos podem ser denunciados em qualquer delegacia ou pelo Ligue 180. A ligação é gratuita e confidencial – preservando o anonimato do denunciante. Quando o crime estiver sendo cometido na hora ou acabado de ocorrer, o ideal é usar o Ligue 190 que aciona a Polícia Militar. O 180 é usado para denúncias de casos não emergenciais porque através dele se faz o encaminhamento da queixa, que não necessariamente precisa ser feita pela vítima, e não dá sequência a abertura do inquérito policial. O canal também oferece orientações e tira dúvidas.

Existem lugares físicos preparados para atender denúncias de violência doméstica, como os Centros de Referência de Atendimento à Mulher (CRM) de cada cidade. Esses locais, além de trabalharem para romper o ciclo da violência, também oferecem orientações sobre a Lei Maria da Penha e fazem o encaminhamento necessário aos órgãos competentes, de acordo com cada caso.

Na impossibilidade de ir a um CRM, seja pela inexistência de uma unidade em sua cidade ou dificuldade de acesso, as denúncias podem ser feitas ainda em uma Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM), que atua da mesma maneira – sobretudo se a mulher estiver sob ameaça ou sofrido agressão física.

Fonte: Marina Teodoro/Portal Terra

 

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