Leyla Yurtsever, advogada, articulista e professora

Vivemos a era do fetiche. Mas, não me refiro ao fetiche sexual ou mesmo religioso exclusivamente. Me refiro ao maior de todos os fetiches: o dinheiro. Em seu nome todas as armas, gestos e orações possíveis são utilizadas. Dinheiro sempre foi associado a poder. É um desejo quase fálico.

Em sua busca por acumular mais e mais dinheiro, os devotos desse fetiche estão dispostos a qualquer sacrifício nesse altar, onde relações são dissimuladas, pessoas são coisificadas e ofertadas em um ritual essencialmente econômico.

É a profecia de Marx se cumprindo, onde pessoas tendem a ser tornar coisas quando se atribui um valor simbólico a elas e, por conseguinte, suas ações e moralidade. Assim, tudo está à venda ou é negociável, mesmo o que há de mais íntimo e pessoal entre as pessoas: suas relações afetivas.

O feitiço de outros objetos tende a coisificar ainda mais as relações. É a felicidade, a beleza, os bens materiais, o poder e os prazeres que nos deixam à deriva, abandonadas como náufragos as frustrações de relações tão enganosas. Somos seduzidos por um teatro sem plateia, onde todos são atuantes e buscam o protagonismo, ainda que utilizando máscaras que simulem afetos, sentimentos e atenção. Nenhum campo da vida está imune a tantos fetiches e feitiços.

Falo (ou escrevo) dessa realidade não como uma abstração ou mesmo uma teorização distante do cotidiano da maioria das pessoas. Muitos, certamente, já se sentiram frustrados, abusados e explorados, quando perceberam que o encanto que deveriam despertar em uma relação estava vinculado ao valor econômico e aos bens materiais que possuíam. O interesse não era na pessoa (ou em você), mas no seu poder simbólico.

Para o direito esse abuso de confiança ganhou uma expressão bem moderna: estelionato sentimental. O termo é um empréstimo do artigo 171 do Código Penal, onde uma vantagem é obtida em prejuízo de outrem. O adjetivo sentimental ao estelionato, ocorre quando em uma relação afetiva, as regras da boa-fé e confiança são utilizadas para obter vantagem econômica. Enquanto uma das partes empenha afeto, carinho, atenção e cuidado a outra parte, simula estas sutilezas, mas com o objetivo único de colher para si benefícios econômicos e materiais.

Em 2015, uma brasiliense ganhou direito a indenização por dívidas contraídas de R$ 101,5 mil para ajudar um parceiro durante o relacionamento. A promessa de casamento, estabilidade financeira e, posterior devolução foram frustradas quando esta descobriu que este mantinha outro relacionamento. A Justiça da Paraíba também mandou indenizar em R$ 50 mil mais R$ 5 mil em danos materiais outra vítima de estelionato sentimental.

Ambas as sentenças afirmam que, embora qualquer ajuda financeira no relacionamento não possa ser considerada ilícita, esta não deve extrapolar os alicerces da boa-fé e confiança das relações. Se, isso ocorre se configura em ilicitude. Ademais, quando uma das partes sabe de antemão de sua intencionalidade de não manter qualquer compromisso, mas visa tão somente uma exploração material, frustrando expectativas esta também é punível no campo civil.

O crescente uso de aplicativos, redes sociais e intermediação das relações onde sorrisos são distribuídos gratuitamente escondem, por vezes, uma realidade de solidão e carência afetiva. Não afirmo que os meios tornam as relações efêmeras, eles têm a vantagem de aproximar e derrubar algumas barreiras, mas também revelam a multidão de solitários de caminha em busca de companhia. Vítimas de estelionato sentimental são muito comuns na atualidade, mas o medo, a vergonha e a dor sentidas são semelhantes a outros tipos de violência.

Voltando a Marx, a percepção do fetiche na mercadoria (pessoas e objetos) tem argucias até mesmo teológicas, ou seja, obedece a padrões de sacralidade ritual. O que certamente representa um perigo ainda maior, pois a religião é outro fetiche. Em todos os casos, para o direito, é preciso evitar qualquer exploração ou abuso em relação aos devotos e seus sacrifícios.

Leyla Yurtsever é advogada, articulista e professora. Sócia e fundadora do escritório jurídico Leyla Yurtsever Advogados Associados. Graduada em Direito. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pelo Ciesa; e em Direito Penal e Processo Penal pela UFAM. É Mestre em Gestão e Auditoria Ambiental pela Universidad de Leon (2006) – Espanha. Doutoranda em Direito pela Universidade Católica de Santa – Fé – UCSF. Foi coordenadora do Curso de Especialização em Direito Eleitoral da Universidade do Estado do Amazonas e do Núcleo de Prática Jurídica, neste último atua ainda como professora. Palestrante convida da Escola Judiciária Eleitoral – EJE/ AM. Coordenou e lecionou no Escritório Jurídico da UNIP e no Núcleo de Advocacia Voluntária – NAV – da Uniniltonlins. Professora da Universidade Federal do Amazonas e subcoordenadora do Núcleo de Prática Jurídica da UFAM/Direito. Foi professora do curso de Segurança Pública da UEA e a primeira mulher a ser professora de uma disciplina militar denominada “Fundamentos Políticos Profissionais” no Comando-geral da Polícia Militar. Atualmente é Assessora Jurídica Institucional da Polícia Militar do Amazonas.