Aniversário de 80 anos da cantora que foi símbolo de resistência à ditadura militar seria no dia 19 de janeiro.
Nara Leão certamente foi uma das artistas mais importantes e influentes da cultura brasileira, não só pela sua obra, mas pelo que representou para a mulher e a sociedade como um todo. Filha caçula de dr. Jairo e dona Tinoca e irmã da modelo e famosa personagem da cena carioca Danuza, a jovem tímida, quieta e cheia de neuroses ficou marcada na história como uma das mais produtivas intérpretes da MPB dos agitados anos 1960 aos 1980, além de ser responsável por definir os costumes e a expressão política da época. A cantora faria 80 anos na próxima quarta-feira, 19/01, e ganhou série documental no Globoplay, “O canto livre de Nara Leão”, em homenagem à data.
Na biografia Ninguém pode com Nara Leão, Tom Cardoso reconstrói a vida da artista que participou ativamente dos mais importantes movimentos musicais surgidos a partir da década de 1960, que, tratada como ‘café com leite’ pela patota que se reunia no apartamento da família em Copacabana, deixou a bossa nova para se juntar à turma politizada do CPC e do Cinema Novo e foi a primeira estrela da MPB a falar abertamente contra a ditadura militar.
Na biografia, que traz prefácio de Tárik de Souza, um dos mais respeitados críticos da MPB, Tom apresenta passagens da infância de Nara, marcadas pela angústia e reclusão, detalhes da inimizade com Elis Regina, dos famosos encontros no apartamento da Av. Atlântica, onde a bossa nova ganhou corpo, cara e nome, do relacionamento com Ronaldo Bôscoli, da amizade com figuras como Vinicius de Moraes, Roberto Menescal e Ferreira Gullar, por quem nutria admiração mutua e teve um affair. No livro, Tom relata que Nara inclusive chegou a sugerir que ele largasse a mulher e os filhos e viajasse com ela pelo Brasil.
À frente de seu tempo, Nara foi uma das primeiras adolescentes do Rio a fazer análise, por necessidade e curiosidade, e a obra “Opinião de Nara”, lançada sete meses após o Golpe de 1964, foi o primeiro trabalho de uma estrela da MPB a colocar o dedo no nariz da ditadura. Além disso, Nara foi a primeira do segmento a atacar diretamente o regime ao afirmar em entrevista ao Diário de Notícias que “o Exército não servia para nada” e que “podiam entender de canhão e metralhadora, mas não pescavam nada de política”.
O livro também acompanha o relacionamento de Nara com o cineasta Cacá Diegues, na época em que se aproximou do CPC e dos expoentes do Cinema Novo. Ele foi o responsável por apresentar a ela um outro mundo musical, fazendo-a se impressionar com artistas como Carmen Miranda, Ary Barroso e Luiz Gonzaga. Ela e Cacá se casaram em cerimônia íntima e recebendo convidados como Danuza e Samuel Wainer, Chico Buarque e Marieta Severo, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Aloysio de Oliveira e Flávio Rangel. Foi também com o cineasta que Nara se exilou na França e teve dois filhos, Isabel e Francisco.
Nara morreu por conta de um tumor no cérebro na manhã de quarta-feira do dia 7 de junho de 1989, aos 47 anos, e deixou um legado que extrapolou o cenário musical na época em que viveu. “Amo Nara Leão. Nara e Narinha. Essa mulher sabe tudo do Brasil 1964. Essa mulher é a primeira mulher brasileira. Essa mulher não tem tempo a perder. Atenção: ninguém pode com Nara Leão”, escreveu Glauber Rocha em uma carta enviada a Cacá Diegues no período do exílio.
POR QUE NINGUÉM PODIA COM NARA LEÃO?
1-A despeito do ar de desencanto e da quase displicência, Nara participou ativamente dos mais importantes movimentos musicais surgidos a partir da década de 1960 — e saiu de todos eles sem se despedir.
2-Ela foi a primeira artista de sua geração a ridicularizar a passeata contra a guitarra elétrica, liderada por Elis Regina e Geraldo Vandré e endossada por Gilberto Gil.
3- Filha de um advogado excêntrico, fez tudo que uma pré-adolescente de classe média alta carioca nos anos 1950 jamais sonhou fazer: como ir ao cinema, ao teatro e ter aulas de violão com um professor negro.
4- Ela foi uma das primeiras adolescentes do Rio a fazer análise, por necessidade e curiosidade.
5-Tratada como bibelô pelos machos alfas da bossa nova, deixou o movimento para se juntar à turma politizada do CPC e do Cinema Novo.
6-No disco de estreia, recusou-se a pegar carona no sucesso da bossa nova e gravou um disco com sambas de Cartola, Zé Kéti e Nelson Cavaquinho.
7- Apesar da decisão de dar um caráter mais político ao disco de estreia, tendo como fio condutor um gênero que estava associado diretamente às massas, ela se recusou a gravar uma letra machista de Cartola.
8- Lançado sete meses após o Golpe de 1964, “Opinião de Nara” foi o primeiro trabalho de uma estrela da MPB a colocar o dedo no nariz da ditadura. Sem rodeios, sem metáforas. Um disco-manifesto, inserido no contexto político-social e em sintonia com o que se ouvia nas favelas do Rio, marginalizadas e discriminadas pela política higienista do governador Carlos Lacerda.
9- O demolidor segundo disco serviu de inspiração para um dos mais revolucionários espetáculos musicais da história do país: o “Opinião”.
10- Foi ela, em pesquisa musical pelo Brasil, quem abriu as portas do Sudeste para os talentos do Teatro Vila Velha, Caetano, Gil, Gal e Bethânia – essa última, com 17 anos, foi convocada para substituí-la no show “Opinião”.
11- Foi a primeira estrela da MPB a falar abertamente e de forma mais contundente contra a ditadura militar, ao afirmar, em 1966, que o “Exército não servia para nada”.
12- Ao ver nascer a expressão “Esquerda Narista”, ela, que sempre rejeitou ser porta-voz de qualquer coisa, decidiu gravar, só por provocação, uma singela marchinha de um compositor iniciante, que mal abria a boca: Chico Buarque.
13-Atendendo a um pedido de Nara, Chico compôs “Com Açúcar, Com Afeto”, a primeira de muitas canções em que a mulher assume a narrativa na primeira pessoa. Preso aos preceitos machistas da época, Chico recusou-se a interpretá-la, passando a tarefa para a cantora Jane Moraes. Nara, sempre na vanguarda, achou a atitude ridícula.
14- Primeira artista da MPB a gravar no mesmo disco Ernesto Nazareth e Lamartine Babo, Villa-Lobos e Custódio Mesquita, Nara nasceu tropicalista antes do movimento existir – e ser gestado com a sua ajuda.
15-Presidente do júri da polêmica e histórica edição do FIC 1972, o festival que revelou Raul Seixas, Sérgio Sampaio e Walter Franco, pediu demissão por não aceitar a ingerência dos militares.
16- Cansada de tudo e de todos, decidiu dar um tempo, no auge da carreira: “Uma hora eu sou a musa da bossa nova, outra a cantora de protesto e ainda tem essa coisa ridícula do joelho. Então me recuso a virar um sabonete e vou dar uma parada”.
17- Decidida a estudar Psicologia na PUC, por um bom tempo não foi reconhecida pelos colegas de classe, dez anos mais novos.
18-De volta aos estúdios, decidiu gravar um disco inteiramente dedicado ao cancioneiro de Roberto e Erasmo, ainda vistos como artistas menores por alguns medalhões da MPB.
19-No fim da década de 1970, rodou o país numa perua kombi, fazendo shows nos rincões do Brasil, ao lado de uma nova e renovadora turma do choro carioca, entre eles o violonista Raphael Rabello, de 15 anos.
20-Diagnosticada com um tumor no cérebro, que lhe impôs uma série de complicações, nunca deixou de produzir compulsivamente, gravando praticamente um disco autoral por ano.