Deusas, Mitos e Pecadoras: O Dia Internacional da Mulher

Se lhe fosse permitido fazer uma única pergunta ao Criador, qual seria? A minha pergunta essencial seria: qual o sentido de ser mulher? Explico a curiosidade.

Talvez tenha ouvido falar sobre uma das origens da mulher. Digo origens mesmo. Porque uma única origem apenas é insuficiente para retratar uma existência tão plural como a feminina.

Em sua insuperável obra Teogonia, Hesíodo narra a criação da mulher como um presente dado aos homens e aos deuses. Seu semblante virginal lembrava as deusas, um poderoso artifício para seduzir os olhares mais desavisados. Era o infortúnio da humanidade, mas assim como os deuses, era a única mortal com o poder de gerar. Semelhantemente no cristianismo, Enoque, narra sobre a sedução feminina sendo ensinada pelos anjos. Ornamentos, maquiagens, comidas e palavras eram seu poder. Em ambos os casos, por rivalizar com o masculino, esse poder deveria ser controlado, desqualificado, posto sob dúvida e até demonizado.

Assim, a mulher surge na história como uma representação ambígua. Presente dos deuses que inunda a existência de prazer, também traz consigo o perigo. Mas, perigo por que? perigo para quem?

A beleza de Afrodite fazia os homens arder em amor e afrontava os deuses. Como castigo por sua vaidade, Zeus lhe obrigou a casar. Em Alexandria, Hipatia teve o infortúnio de ter seu talento matemático considerado uma transgressão a condição feminina, sendo uma pecadora e, por tal, foi assassinada. Com genialidade Raquel de Queiroz denunciou a aridez de uma região, mas também a violência e os silenciamentos impostos a mulher. A crueza de sua narrativa foi atribuída a coisa de “sujeito barbado”, jamais uma mulher.

Beleza, inteligência e sensibilidade eram o poder dessas mulheres. Suas seduções eram materializadas em ações e palavras de revolução que não admitiam o papel secundário atribuído as mulheres. Os exemplos transbordam na história.

As marchas femininas, no início dos anos 1900, em Nova York, Europa e Rússia exigindo melhores condições de trabalho e igualdade de direitos inspiraram a ONU para estabelecer o Dia Internacional da Mulher em 1975. São marchas que entraram para a história, enquanto as desigualdades de gênero, violências e assédios entraram para as estatísticas, visto que não acabaram, apenas se transformaram.
Em pleno natal de 2020, seis mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil. São casos de misoginia que se amontoam as estatísticas do Judiciário, alimentadas por um machismo estrutural praticamente intransponível. Nem mesmo as casas legislativas estão imunes a essa vergonha. O assédio sexual sofrido por uma deputada estadual na Assembleia Legislativa em São Paulo, se junta a outros casos na Câmara Federal, onde “a famosa encoxada”, nas palavras de uma deputada, são cenas comuns. Mesmo as deputadas reconhecem a impunidade, visto que o julgamento desses casos, quando denunciados, cabe ao infrutífero Conselho de ética. Nesse caso, o ética fica minúsculo mesmo, devido sua completa distorção.

Se casos acometem as integrantes legislativo, imagine a realidade das demais mortais; mulheres que em seu dia-a-dia enfrentam uma realidade sem qualquer despudor. Participar de uma entrevista de emprego, por vezes, se tornou um campo minado. Convites grosseiros, insinuações, pedidos infames e outros assédios sexuais passaram a fazer parte do checklist admissional. Superada essa fase, o mercado de trabalho ainda continua a ser bastante desigual com as mulheres.

Ranking da Harvard Business Review em 2019 revelou que das 30 maiores empresas do mundo, apenas 03 eram dirigidas por mulheres. Esse número só alcançou 20 em 2018, quando se considerou as 500 empresas pela pesquisa da S&P. Já o Relatório The business case for change patrocinado pela Organização Mundial do Trabalho em 2019 revelou que empresas lideradas por mulheres apresentam melhores resultados, apesar delas serem menos de 30% nos cargos de chefia.

08 de março deve representar o sentido de ser mulher. E essa é uma condição sem qualquer posição intermediária. O protagonismo é de nossa essência. Nela não se admite o falso perigo preconceituoso, nem se cede ao abismo da objetificação sexual ou mesmo ao desvirtuar de ações, vistas como pecaminosas. Sem qualquer disfarce, mulheres gestão não apenas a humanidade, mas a própria história. Poderia escrever sobre flores neste dia. Mas estas devem ser o normal, não fato ocasional.

É-se mulher. Isso sim é inegociável!

Deusas, santas ou pecadoras, compartilham o mesmo destino costurado de belezas, glórias e injustiças. Em comum a todas: por suas ações, imortais, mas por sua natureza, mulheres.

 

Leyla Yurtseveré advogada, articulista e professora. Sócia e fundadora do escritório jurídico Leyla Yurtsever Advogados Associados. Graduada em Direito. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pelo Ciesa; e em Direito Penal e Processo Penal pela Ufam. É Mestre em Gestão e Auditoria Ambiental pela Universidad de Leon (2006) – Espanha. Doutoranda em Direito pela Universidade Católica de Santa – Fé – UCSF. Foi coordenadora do Curso de Especialização em Direito Eleitoral da Universidade do Estado do Amazonas e do Núcleo de Prática Jurídica, neste último atua ainda como professora. Palestrante convida da Escola Judicária Eleitoral – EJE/ AM. Coordenadou e lecionou no Escritório Jurídico da UNIP e no Núcleo de Advocacia Voluntária – NAV – da Uniniltonlins. Professora da Universidade Federal do Amazonas e subcoordenadora do Núcleo de Prática Jurídica da UFAM/Direito. Foi professora do curso de Segurança Pública da Uea e a primeira mulher a ser professora de uma disciplina militar denominada “Fundamentos Políticos Profissionais” no Comando-geral da Polícia Militar.

 

 

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