Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) lançou guia para incentivar pais e educadores a proporcionar mais diversão aos pequenos em espaços abertos
Correr na grama de pés descalços, sujar a roupa de terra e fazer mandalas com folhas secas é tão natural para Valentina Diel, de oito anos, que ela tem até uma árvore favorita no Parque Farroupilha (Redenção): é um cocão às margens do caminho central que tem a forma perfeita para ela se apoiar nos galhos. O gosto por essa brincadeira veio quase junto com os primeiros passos, tanto que Valentina quebrou o braço numa queda de árvore logo aos dois anos de idade. Nada que a impedisse de aprimorar as técnicas para subir cada vez mais alto.
Inserir experiências com a natureza na rotina das crianças, de preferência na companhia da família e dos amigos, é um dos ingredientes primordiais na receita de uma infância feliz, segundo evidências de pesquisas internacionais estudadas pelo Instituto Alana para a elaboração do manual Benefícios da Natureza no Desenvolvimento de Crianças e Adolescentes, em parceria com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Lançado nesta semana, durante um congresso da área em Porto Alegre, o guia tem como principal inspiração o livro de Richard Louv A última criança na natureza, publicado nos Estados Unidos em 2005, e propõe até algumas metas: procurar áreas remotas e selvagens anualmente, visitar um parque urbano mensalmente, observar pássaros, plantas e pedras semanalmente e brincar ao ar livre diariamente.
Nem sempre é fácil seguir as instruções, principalmente nas grandes cidades, onde a maior parte das famílias reside em apartamentos sem pátio e as distâncias dificultam a convivência com o que se chama de família estendida — primos e outros parentes próximos. E tem mais a segurança urbana, que muitas vezes inibe a ocupação de espaços públicos.
—
É uma preocupação real, mas, com isso, as crianças são cada vez mais
empurradas para dentro de casa. Além de favorecer a exposição a jogos
eletrônicos, esse processo também pode contribuir para o isolamento
social, pois a maioria dos pequenos nem tem irmãos para brincar em casa —
pontua a engenheira florestal Maria Isabel de Barros, pesquisadora do
programa Criança e Natureza do Instituto Alana.
Reflexos na vida adulta
Para o pediatra Ricardo Halpern, da área de Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul, unir família e natureza é a combinação perfeita para a felicidade dos pequenos.
— A criança tem como postulado básico do desenvolvimento sua capacidade de formar relacionamentos estreitos e seguros e também de aprender a explorar o ambiente. O produto dessas interações é uma infância feliz — diz o médico.
A ausência dessas experiências pode ter consequências diversas, não só na infância, mas também na vida adulta. O convívio favorece a noção de corpo, de distância, de limite e a falta de brincadeiras pode resultar tanto em limitações psicomotoras — adultos que não sabem correr ou pular porque não tiveram brincadeiras corporais na infância — até outros transtornos mais graves, que muitas vezes se confundem com o espectro autista, devido ao isolamento social.
Nos Estados Unidos, com base em um questionário respondido anualmente por cerca de 6 mil pessoas, por telefone, pesquisadores da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health encontraram relações significativas entre boas experiências na infância e saúde mental na vida adulta. Entre os que relataram de seis a sete vivências felizes na infância, a chance de desenvolver depressão ou outro sintoma de doença mental nos meses anteriores à pesquisa foi 72% menor, em comparação com quem não relatou até duas experiências positivas. Para três a cinco vivências positivas, o risco à saúde mental se revelou 50% menor.
A psicóloga e psicanalista Andrea Ferrari, professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), recomenda cuidado com a expressão “feliz”, não só porque ela implica uma relação com outra experiência, para que se possa valorar uma vivência como feliz ou não, mas também pela cobrança social de felicidade permanente, que é inatingível.
— Em todos os momentos da vida, inclusive na infância, viver exige administrar frustrações. Permitir que as crianças tenham experiências sozinhas e vivam suas descobertas e frustrações faz parte do desenvolvimento — pontua a pesquisadora.
Importância dos vínculos
Em linhas gerais, Andrea destaca que a satisfação, principalmente na primeira infância, está ligada a sensações como acolhimento, segurança e confiança. Por isso, a participação da família nas horas livres é fortemente associada a bem-estar pelos pequenos. Em 2014, a SBP e o Instituto Datafolha ouviram 1.525 crianças brasileiras de quatro a 10 anos, em 131 municípios. Na presença dos pais, elas foram interrogadas sobre o que mais gostavam de fazer quando não estão na escola e foram expostas a situações sobre as quais deveriam manifestar seu estado de alegria ou tristeza, usando cartões com “carinhas”. Uma das conclusões da pesquisa foi que não é brinquedo que faz uma criança feliz, e sim brincar, de preferência, com a família e os amigos: 47% dos entrevistados disseram ficar tristes ou muito tristes quando brincam sozinhos.
— Mas é importante que a responsabilidade pela promoção desse bem-estar não recaia só sobre o cuidador, o Estado também tem responsabilidade. O adulto precisa ser cuidado para poder cuidar — destaca Andrea, pontuando discussões não só sobre segurança, mas também sobre carga horária de trabalho e questões de gênero.
Criar redes é uma das saídas para driblar a rotina ocupada e proporcionar atividades de lazer ao ar livre para os pequenos. Os pais da Valentina, Jaqueline Maciel e Celito Diel, acompanham a filha com um grupo de colegas durante a brincadeira no parque na saída da escola, até que os demais possam sair do trabalho para buscar os pimpolhos. Bióloga, Jaqueline criou um projeto, o Sabiá Laranjeira, para acompanhar crianças e seus familiares em passeios mensais pelos parques de Porto Alegre.
— Percebi que alguns amiguinhos da Valentina tinham medo de tirar os tênis e pisar na grama. Se você observar o parque aos finais de semana, vai ver que as famílias estendem suas cangas, mas não interagem com o parque, nem entre si, está cada um de olho numa tela — observa Jaqueline.
Estabelecer vínculos com as áreas verdes, segundo a bióloga, passa pela relação com o espaço, mas também pelas memórias afetivas que ele traz, daí a ideia de promover piqueniques para explorar a natureza — em família. Mãe do Rafael, de cinco anos, e da Anita, de oito, a fonoaudióloga Valéria Delabary compartilha do passeio com a criançada.
—
Quando a gente vem ao parque com eles, também é, para nós, um momento
de conexão, com nossos filhos e com a natureza — conclui Valéria.
Orientações para as famílias:
- Não deixe que a agenda do seu filho seja completamente preenchida por estudos e atividades extracurriculares. Reserve pelo menos uma hora por dia para que ele possa brincar ao ar livre.
- Não é preciso procurar lugares distantes ou perfeitos, dê um passeio na rua, use o pátio do prédio, vá até a praça mais próxima.
- Sempre que possível, realize os deslocamentos rotineiros com a criança a pé. Bicicleta também é uma opção. Além de proporcionar uma atividade física, isso cria senso de pertencimento e cria vínculos afetivos.
- Sirva de exemplo: saia de casa. Reserve tempo para atividades ao ar livre com seu filho. O exemplo dos adultos é fundamental para que os pequenos estabeleçam uma relação duradoura com a natureza.
- Leve a flora e a fauna para dentro de casa: deixe que seu filho brinque com animais domésticos e mexa na terra, seja um jardim ou uma pequena horta.
- Não existe clima ruim, só roupas impróprias. Bota plástica e capa de chuva permitem que seu filho vá para o lado de fora mesmo que esteja chovendo. Nos dias muito ensolarados, proteja a criança com chapéu e protetor solar, mas dê preferência à sombra na hora da brincadeira.
- Converse com outros pais sobre como oportunizar mais tempo para diversão ao ar livre aos pequenos, apesar dos problemas de segurança pública e horários de trabalho. Tente criar redes de apoio para que o shopping não seja a única opção.
Fonte: Manual de Orientação – Benefícios da Natureza no Desenvolvimento de Crianças e Adolescentes
Via: Gauchazh