O disco é resultado do encontro entre os músicos cariocas Dora Morelenbaum, Julia Mestre, Lucas Nunes e Zé Ibarra.

 

Muita música foi produzida sob a nuvem deprê da pandemia que assombrou o planeta nos últimos dois anos. Diante da bizarra realidade ao redor, esses artistas e seus trabalhos propunham uma leitura muitas vezes melancólica do cotidiano, feita em cunho existencialista e ultrapessoal, como retratos desses dias tristes que se repetiram ao infinito, sempre iguais ou piores. Muitas vezes produzidos no esquema one man band, conforme as cartilhas do distanciamento e da fobia social que tanto a pandemia quanto o individualismo propõem, essas obras de quarentena expuseram o pensamento do ser solitário, da cabeça perdida dentro de si, atordoada. Sim Sim Sim é, nos processos e conclusões, exatamente o oposto disso. Primeiro álbum do Bala Desejo, quarteto formado por Dora Morelenbaum, Julia Mestre, Lucas Nunes e Zé Ibarra, também nasceu, das composições à gravação, em meio ao recolhimento, no ano passado. Mas todo o seu resultado aponta para direção oposta, mirando não o buraco, mas a porta de saída, o futuro viável, o reencontro, o caminho de volta pra rua – over the rainbow e além do horizonte. O recarnaval.

Lançamento do Coala Records, selo ligado ao Coala Festival, Sim Sim Sim chega às plataformas de música seguindo a lógica dos LPs: o Lado A está disponível nas plataformas digitais de streaming (ouça aqui); o Lado B será lançado em 16 de fevereiro. Os dois lados vão se encontrar em um vinil, a ser lançado em seguida, ainda neste 2022. Com repertório essencialmente autoral e inédito – a única exceção é “Nana del Caballo Grande”, poema de Federico García Lorca musicado por Sergio Aschero -, Sim Sim Sim agrega nomes das mais diversas áreas e gerações. Tem direção artística e produção musical do próprio Bala Desejo, com coprodução de Ana Frango Elétrico e supervisão de Marcus Preto, que também assina esse texto de apresentação. Tim Bernardes, Gabriel Quinto e João Felippe fazem participações instrumentais, incrementando a banda formada por Alberto Continentino (baixo), Daniel Conceição (percussão e bateria), Marcelo Costa (percussão) e Thomas Harres (bateria e percussão). O maestro Jaques Morelenbaum assina os arranjos de cordas e divide com Diogo Gomes os de sopro (leia abaixo o faixa-a-faixa completo segundo as palavras do próprio Bala Desejo).

Mas era preciso muito mais gente pra levar adiante a proposta agregadora do Bala Desejo. A fim de desenvolver outras camadas de narrativa pra além do pensamento estritamente musical do álbum, o quarteto convidou os roteiristas Bruno Jablonski e Maria Santos pra dividirem a criação de algumas faixas incidentais e outras interferências que atravessassem Sim Sim Sim. Nasceu assim a kombi do Bala Desejo, que corre de cidade em cidade convocando as pessoas pra seu recarnaval. Essa imagem define absolutamente o processo criativo trilhado por Dora, Julia, Lucas e Zé durante a feitura do álbum, em que a todo momento um novo elemento chegava junto, a fim de contribuir com uma mão, uma voz ou uma ideia. E foram devidamente registrados pelo quarteto em também em cartório poético, certificado na letra de “Lambe Lambe”: “Pop americano dos garotos do araçá/ Cor de rosa choque ava periférica/ Cai na nossa cama uma semana sem parar/ Tim, tom, beat, brack, ana, rubel, chablaubla”.

De Teresa Cristina a Santa Teresa

Antes de seguir com outro assunto qualquer, é preciso esclarecer: Bala Desejo não é uma banda. É, isso sim, a união de quatro forças que já aconteciam (e seguirão acontecendo) sozinhas, cada uma com sua assinatura e trabalho individual. Mas que decidiram, neste momento, acontecer em conjunto. A história toda vem de antes, no começo da década passada, quando Dora, Julia, Lucas e Zé se conheceram na escola e se tornaram melhores amigos. Mas começou a tomar a atual forma nos primeiros meses da pandemia, mais precisamente no dia 20 de junho de 2020. Com o saco cheio do isolamento compulsório, Julia saiu ligando pra cada um dos outros três: “Não quer vir morar aqui em casa?”. E ouviu três vezes a mesma resposta: “Claro que topo”.

A vida seguia individualmente. Julia iniciava a pré-produção de seu segundo álbum. Dora esboçava aquele que será seu trabalho de estreia solo. Lucas e Zé viviam o meio do processo de gravação do ainda inédito segundo álbum da Dônica, banda que ambos dividem com Tom Veloso, Miguel Góes e Felipe Larrosa Moura. E teriam seguido esses planos se não tivessem se juntado na mesma casa. Aliás, foi com o pretexto de concluir as gravações da Dônica que tiveram a ideia de montar um estúdio na casa nova. Dali até começarem a criar material novo, dos quatro, foi um sopro. Começaram a esboçar novas canções, escritas em dupla, trio ou quarteto. E a visitar o repertório dos autores clássicos da MPB, influência fundamental e natural dos quatro desde a origem.

As participações diárias nas fervilhantes lives da cantora Teresa Cristina, que acalentaram as noites de tanta gente no pior momento da pandemia, em 2020, deram um impulso fundamental na consolidação dos quatro como elemento único. Logo cedo, Teresa avisava quem seria o artista-tema da noite. Eles passavam as tardes ensaiando canções relacionadas e as apresentavam horas depois pra um público que, machucado pelos gatilhos da pandemia, estava absolutamente disposto a abraçar aquela pequena janela de belezas na tela do celular. E que força inacreditável tinham aquelas aparições. A sensação de quem assistia aos quatro, cantando e vivendo uma realidade paralela e muito mais gentil da quarentena, era de “quero morar nessa casa, tenho que chegar mais perto, preciso ficar amigo desses meninos”.

Foi nas lives de Teresa Cristina que a curadoria do Coala Festival viu a potência musical daquelas quatro figuras juntas – que, é bom lembrar, ainda não se identificavam como um grupo uno, portanto não tinham nem nome. É aqui que eu, autor deste texto de apresentação, começo a ver as coisas de dentro. Estava com meu amigo Gabriel Andrade, o Bill, idealizador do Coala e meu parceiro de curadoria no festival, discutindo nomes para o lineup da próxima edição. E tivemos a ideia de juntar os quatro no palco do festival. A reação entusiasmada de Fernanda Pereira e Henrique Anacleto, também do Coala, foi o primeiro termômetro de que ia dar caldo. O quarteto representava tudo o que a gente sempre defendeu pra o festival: a nova música brasileira que sabe de onde veio e dialoga com a própria história (sem que isso seja uma questão); compositores que valorizam especialmente a canção; artistas com potencial para furar a bolha alternativa e conquistar ouvidos e amores para além de limites de mercado; figuras de força musical indiscutível, mas que também sejam grandes em cena. No dia seguinte, um sábado, Bill fez o convite ao quarteto: “Querem tocar no Coala?”. Detalhe: esse convite não foi feito em um telefonema ou e-mail, mas no chat da própria live da Teresa Cristina. Rolou a gritaria da surpresa e eles mal conseguiam entender se era uma proposta real ou um trote. Mais algumas ligações pra o produtor deles, João Severo, e estava tudo resolvido.

Mas a pandemia seguiu castigando. Com a impossibilidade de fazer um show naquele ano e com o namoro engatado entre quarteto e Coala, Zé Ibarra me apresentou o desejo de fazer um single ou um EP como “esquenta pra o festival”. Levei a ideia ao time, Bill sempre à frente nesses casos, mas já sugeri que fizéssemos um álbum inteiro. Todos nós – quarteto, Bill, eu, Coala – gostamos de contar histórias e é só com um álbum que isso pode ser feito de fato. Bill já tinha me falado em gravar um “ao vivo no Coala”. Não havendo festival, por que não inverter a ordem e fazer um álbum de estúdio? Colou geral. E o Coala Records virou o selo do quarteto ainda sem nome. Nesse momento, me ofereci (muito mais sério do que isso: me atirei aos pés deles; lembra do “quero morar nessa casa, tenho que ficar perto desses meninos”?) pra fazer a direção artística do álbum. Dei sorte e eles toparam, mas mesmo essa função foi se transformando em outra coisa, dada a personalidade agregadora dos quatro: sempre entrava alguém novo pra fazer alguma função que ainda nem existia – e você vai entender a dimensão disso quando ler a ficha técnica de Sim Sim Sim.

O fato é que eles tinham um álbum pra entregar em seis meses. E, se tanto, três canções prontas. Precisavam trabalhar muito e rápido. Usando o prazo de entrega como musa inspiradora, os quatro – mais Lucas Vaz, o videomaker e fotógrafo que logo se juntou ao grupo – partiram, em março, para o sítio de Julia Mestre, em Barbacena, interior de Minas. Voltaram lá outras duas vezes. E, naquele cenário, criaram quase todo o repertório que você ouve agora em Sim Sim Sim. Ali, também encontraram o nome: Bala Desejo.

Devidamente batizados, retornaram ao Rio, cidade em que os quatro nasceram, e começaram a burilar o material. Fizeram os primeiros ensaios pré-estúdio na garagem da casa de Dora Morelenbaum. E, a essa altura, entra no time Ana Frango Elétrico. Também cantora e compositora, ela chega pra cuidar de toda a produção musical do álbum. Mas, outra vez, a força dos Bala Desejo se impôs – quatro cabeças que não param de ter ideias e insights e impulsos e lampejos o tempo todo – e veio da própria Ana, logo depois, a decisão de assinar a co-produção, deixando a produção a cargo dos quatro integrantes do Bala.

Chega enfim o momento de entrar em estúdio, a mais aguardada das etapas. Fomos morar em Santa Teresa, em uma deliciosa casa de quatro quartos na rua Áurea, a poucas quadras do estúdio Carolina. Juntos sob o mesmo teto, os quatro balas, eu e a turma do Coala pudemos pôr em prática muito do clima que seria registrado no álbum, em temporada marcada por polaroides e cogumelos, rodas de violão e pias de louça pra lavar. A experiência “anos 70” do processo, muito diferente da maneira como são gravados os álbuns nesses nossos tempos práticos, certamente resultou em expressão sonora, que você vai poder detectar na audição de Sim Sim Sim.

Terminadas as gravações de base, o material ganhou overdubs, feitos de novo no primeiro endereço dessa história, o estúdio montado na casa de Julia Mestre. As cordas e sopros de Jaques Morelenbaum foram gravados na Cia dos Técnicos e outros instrumentos, registrados no estúdio de Caetano Veloso, onde Lucas Nunes trabalhava na produção do álbum “Meu Coco”. Última coisa a entrar foram as intervenções entre as faixas, que amarraram a segunda camada de sentidos de Sim Sim Sim. Mas isso foi o mais fácil. Todo mundo estava como a audiência das lives de Teresa Cristina, querendo morar nessa casa, louco pra ficar ainda mais perto daqueles quatro meninos.