São necessários dois dias para chegar ao onsen mais remoto do Japão, localizado ao lado do rio Kurobe, nos Alpes japoneses. Foto: Lily Crossley-Baxter / BBC News Brasil

As águas termais do Japão onde todo mundo fica nu

Há mais de 3 mil onsens no Japão – mas um deles é tão lendário que os banhistas embarcam em uma jornada de pelo menos dois dias para mergulhar nas suas águas

 

Localizada ao lado do rio Kurobe, nos Alpes japoneses, a pequena fonte termal de água azul em que estou prestes a mergulhar é bem simples.

Um punhado de baldes amarelos servem como chuveiro, e as roupas ficam penduradas nas rochas ao redor. Não é uma experiência de spa de luxo — mas essa é a beleza da coisa.

Por mais de mil anos, as fontes termais naturais — conhecidas como onsen — são parte essencial da vida japonesa, lavando tanto o corpo, quanto a alma.

Há mais de 3 mil onsens para escolher no país, todos com águas ricas em minerais, provenientes das 25 mil fontes termais que borbulham sob a superfície geotérmica do arquipélago.

Os banhos, por sua vez, proporcionam não só um espaço para reflexão pessoal, como também para socializar — famílias, amigos e vizinhos tiram suas roupas e entram juntos nas águas fumegantes.

De spas elegantes no centro das cidades a cavernas à beira-mar, cada onsen do Japão tem seu encanto — mas um deles tem uma localização sem igual.

É o Takamagahara (que significa literalmente “altas planícies do céu”), conhecido como o onsen mais remoto do Japão. São necessários pelo menos dois dias para chegar até lá — uma verdadeira peregrinação para os banhistas mais aventureiros.

Para mergulhar nas águas deste onsen, localizado no Parque Nacional Chubu-Sangaku, é preciso caminhar 40 km, atravessar rios e florestas, subir ladeiras íngremes e pernoitar em cabanas isoladas nas montanhas.

 

Foto: Lily Crossley-Baxter / BBC News Brasil

 

Não é uma trilha para iniciantes: é uma expedição, que exige resistência física e uma profunda compreensão do clima volátil das montanhas.

A recompensa está em se banhar nas termas das profundezas do vale rochoso. Embora o cenário, os minerais e os designs de cada onsen sejam únicos, eles compartilham uma conexão intangível com a natureza.

No mundo cada vez mais urbanizado de hoje, não surpreende que os banhos ao ar livre, conhecidos como “rotenburo”, estejam entre os mais procurados — eles oferecem a vista do céu estrelado e uma brisa refrescante à medida que os banhistas se acomodam nas águas ricas em minerais.

A quilômetros da civilização urbana, cercado por árvores alpinas e embalado pelo som da água corrente, Takamagahara é o ápice da experiência do “rotenburo”.

Embora uma jornada de quatro dias de ida e volta possa parecer demais, a tradição da peregrinação no Japão remonta há séculos – um exemplo perfeito de que a jornada é igual, se não transcendental, ao destino.

Uma vez visitadas por peregrinos do período Edo, as montanhas ao redor de Takamagahara foram “divinizadas” e vistas como manifestações de kami, espíritos da religião xintoísta indígena do Japão.

Confesso que sou apaixonada por fontes termais, portanto, esta não foi a primeira viagem que planejei para me banhar em um onsen japonês, mas foi certamente a mais intensa. Desde a minha primeira experiência em um onsen, durante o inverno de Hokkaido, quando passei horas imersa relaxando com os amigos, foi paixão à primeira vista.

Cinco anos depois, com o calor do verão finalmente se dissipando, uma caminhada nas montanhas parecia a pedida perfeita para abrir a temporada de aventuras nas fontes termais.

Pensando nas montanhas selvagens e remotas, sem viva alma à vista — um forte contraste com os movimentados bairros de Tóquio —, peguei um trem-bala até Toyama. No início da manhã do dia seguinte, fiz uma viagem de ônibus de duas horas até o começo trilha, perto da pequena vila de Orite.

Em questão de minutos, as encostas íngreme e os caminhos acidentados confirmaram a terrível reputação da trilha. Tentando acompanhar o ritmo do meu parceiro de caminhadas, continuei ofegante, mas determinada, por trilhas estreitas e escarpadas. Fomos saudados com muitos “Konnichiwa!” (que significa “olá” em japonês) e um eventual “Hello!” diante da visão inesperada de dois ocidentais, sem dúvida não estávamos sozinhos.

Enquanto subíamos, a névoa rolava sobre as colinas, transformando completamente a paisagem. Quando perdemos o sinal de celular, sentimos que nosso último vínculo com o mundo cotidiano tinha se rompido. A superfície rochosa da trilha pela encosta foi logo substituída por tábuas de madeira usadas para proteger o tapete verde da flora alpina.

As tábuas desgastadas pelo tempo formam um cenário pitoresco, serpenteando ao longo das encostas ao longe, e atraindo seu olhar junto com elas. Começamos a identificar pontos coloridos em meio à grama, as últimas flores alpinas da estação.

 

Foto: Lily Crossley-Baxter / BBC News Brasil

 

Era um dos últimos fins de semana antes das cabanas que servem de refúgio na montanha, conhecidas como “yamagoya”, fecharem para o inverno. Essas cabanas — que recebem seus suprimentos de helicóptero todos os meses e são administradas por funcionários que moram no local — oferecem acomodações simples e refeições caseiras.

Sendo a única conexão com o mundo exterior, as cabanas representam uma rede vital nas cordilheiras remotas, recomendando as melhores rotas com base na previsão do tempo e fazendo um controle dos andarilhos para garantir que ninguém se perca ou fique para trás.

Quando chegamos à primeira cabana para descansar, paramos para comer um curry nepalês e enchemos nossas garrafas com água fresca da montanha na torneira.

Depois de uma caminhada de 12 km, chegamos à cabana onde passaríamos a noite. Mesmo após anos de intemperismo, a estrutura ainda era forte, garantiu nosso anfitrião, batendo nas tábuas de madeira enquanto nos conduzia até os dormitórios compartilhados.

 

Foto: Lily Crossley-Baxter / BBC News Brasil

 

Forrado com tapetes de tatami, com cobertores cuidadosamente empilhados, o quarto tinha uma decoração simples — e já estava movimentado com os hóspedes daquela noite. Enquanto nos recuperávamos na varanda que tinha vista para o rio Kurobe, observei alguns andarilhos, aparentemente incansáveis, sentados com suas varas de pescar à beira da água.

No jantar, foi servida uma panela enorme de tempurá crocante e arroz fumegante. Sopa e chá completaram a refeição, enquanto interjeições entusiasmadas de “itadakimasu” (“bom apetite”) ecoavam entre os hóspedes à nossa volta.

Logo depois, enquanto conversávamos com nossos vizinhos de mesa, começaram os brindes ao som de “kanpai!” (equivalente ao nosso “tim-tim”) . Dado nosso destino final, eu diria que foi um banquete comunitário bem apropriado.

Um dos prazeres dos banhos públicos é a oportunidade de se conectar melhor com amigos, familiares ou colegas. Submersos lado a lado, os banhistas podem ignorar as relações hierárquicas da cultura japonesa e falar abertamente em meio ao vapor das fontes termais.

 

Foto: Lily Crossley-Baxter / BBC News Brasil

 

O conceito, conhecido como “hadaka no tsukiai” (algo como “comunhão da nudez”), remove barreiras e cria laços que seriam impossíveis sem a intimidade do banho compartilhado. Quando todos estão nus, são todos iguais. Na verdade, a atmosfera tranquila de um onsen depende do delicado equilíbrio de um código tácito.

Desde a remoção dos sapatos até se assear em lavatórios individuais, essas regras de etiqueta se traduzem, a cada etapa, em um refúgio purificador da monotonia da vida cotidiana.

Na manhã seguinte, nos levantamos antes do sol nascer, e nos juntamos a nossos colegas andarilhos para tomar café da manhã — arroz coberto com umeboshi (ameixas em conserva), sopa e tamagoyaki (omelete).

Agradecemos aos nossos anfitriões e partimos. Caminhamos em direção ao planalto de Kumanodaira — e sua famosa vista para os picos das montanhas.

A trilha continuou por terrenos pedregosos e acidentados. Ao virar uma esquina, nos deparamos com dois andarilhos idosos que tentavam alcançar cuidadosamente um arbusto. “Amoras!”, eles exclamaram, apontando para um galho.

Os dois contaram que caminhavam pelos Alpes japoneses todos os anos — e riram quando falei que a caminhada era difícil. Eles sobem essas montanhas desde os 10 anos de idade e disseram que já escalaram o K2 e o Everest juntos.

Quando se separaram da gente, nos desejaram boa sorte. E garantiram que não nos decepcionaríamos com o onsen.

 

Foto: Lily Crossley-Baxter / BBC News Brasil

 

Após subir escadas e atravessar pontes estreitas, finalmente chegamos à modesta cabana de Takamagahara — onde avistamos placas para o onsen. Deixamos nossa bagagem e seguimos por uma trilha acidentada de 20 minutos em direção à famosa fonte termal, instigados pela perspectiva de finalmente nos entregar ao tão esperado banho.

O cheiro inconfundível de enxofre — um aroma que os amantes de onsen não podem evitar — foi o primeiro indício da fonte termal.

Em Takamagahara, há duas piscinas separadas por gênero, protegidas por uma simples cobertura de bambu, e uma terceira que é aberta e mista (para homens e mulheres).

 

Foto: Lily Crossley-Baxter / BBC News Brasil

 

O banho misto, conhecido como “konyoku”, era comum no Japão até o século 19, mas agora apenas algumas termas espalhadas pelas áreas rurais mantêm essa tradição. Quando chegamos, já havia dois homens idosos nus imersos no onsen misto.

Do outro lado, avistei a entrada do onsen feminino, mas resolvi ficar um pouco para conversar com os banhistas, incluindo um que dizia ter o que chama de “onsen-mania”. Ele contou que caminhou oito dias, desde a província de Gifu, para chegar a Takamagahara.

Quando perguntamos de onde vinha tamanha determinação, ele declarou seu amor pelo “rotenburo” e apontou para a paisagem ao nosso redor.

“O que poderia ser melhor que isso?”, questionou.

Quando meu companheiro de caminhada se juntou à conversa, aproveitei para ir até o onsen feminino. Me deparei com uma simples piscina revestida de pedra com uma cabine de madeira para trocar de roupa. Eu estava completamente sozinha, longe da vista dos outros banhistas, mas com uma vista panorâmica das árvores e montanhas no horizonte.

Entrei naquela água translúcida, e as horas de caminhada rapidamente ficaram para trás, enquanto eu admirava os picos rochosos ao longe. Afundei ainda mais, deixando a água cobrir meus ombros.

Antes de embarcar nessa jornada, eu achava que estar “em harmonia com a natureza” significava estar sozinho nela. E como nunca havia ido a nenhum dos poucos onsens mistos que ainda restam no Japão, jamais havia pensado em tomar banho em uma fonte termal para homens e mulheres.

 

Foto: Lily Crossley-Baxter / BBC News Brasil

 

Mas quando estendi meus ombros no vapor, me lembrei da expressão japonesa “kachou fuugetsu”. Traduzida literalmente como “flor, pássaro, vento, lua”, representa a importância de experimentar a beleza da natureza e aproveitar a oportunidade para aprender sobre si mesmo.

Enquanto eu pensava nos inúmeros momentos de “comunhão da nudez” que vivenciei em banhos exclusivos para mulheres e na longa tradição japonesa de onsens mistos, saí hesitante da piscina feminina — e olhei pela última vez para a minha toalha.

Após uma rápida “chuveirada” com os baldes amarelos, me juntei aos outros banhistas nas águas termais mistas — e agora posso dizer que experimentei a verdadeira essência comunitária do onsen no topo do céu do Japão.

 

Fonte: Lily Crossley-Baxter – BBC Travel

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