A estetização das coisas

O capitalismo, com seu duro e violento modus operandi, seus braços de cobiça e olhos que tudo vêem, tratou de enfeiar o mundo: paisagens destruídas, meio ambiente degradado, recursos em escassez, colapso e estresse dos trabalhadores – tudo banal, feio e triste; decadência estética e melancolia: será essa a dura realidade a encarar?

Um novo prisma se descortina, porém, num controverso embate entre “enfeiamento” e embelezamento: a estetização do mundo – tema com o qual Gille Lipovetsky nos brinda através de uma abordagem quase ácida, crítica sim, mas tão real e próxima, tão nós, seres humanos e cidadãos deste século, deste mundo de lugares e coisas para decifrar no seu âmago e fazê-las caber na nossa vida, nessa incessante busca por prazer e sentido que vivemos.

Os imperativos são novos, desafiam a tecnologia, indústria e processos produtivos; nosso nível de exigência e rigor são extremados, sem limites, e o super encantamento se tornou parte subjetiva e essencial do design dos produtos: a beleza, o desfrute do prazer, a emoção obrigatória e também parte de uma nova estética que redesenha coisas, básicas antes, simples nos seus velhos formatos e jeitos: é a estetização das coisas, novos parâmetros determinam forma, uso e significado.

Irrompe a era do super estilo, o belo que distingue, a revolução do design que recria de escovas de dente e papeis higiênicos – ou simples utensílios domésticos – a carros e casas, atravessando o complexo mundo da moda e do luxo, bem como seus significados recontidos e intrincados – terreno fértil do sonho, do exagero e da megalomania.

Tal revolução de ideias, concepções e vaidades extremadas alcançou e rompeu com conceitos ideológicos e dogmas centenários e arraigados. O capitalismo, nesse sentido, deixou de ser material e se tornou imaterial: tudo é imaginação e sonho, idealismo e prazer. Busca-se sensibilidade além das artes, ou melhor, através desse novo sentido artístico, que repousava antes no genuinamente belo, e a partir de agora entrelaçado ao improvável binômio arte e mercado, que deu adeus à dimensão gloriosa e absoluta, ao poder questionador de épocas mais inteligentes e rigorosas, profundas e transformadoras da história. Novos tempos.

Essa arte descomprometida em transformar a humanidade não reflete mais sua própria função social e política.

Houve uma reconfiguração de igual tamanho e furor, muito além do design e padrões de produtos; os propósitos também são outros e menores, se comparados à grandeza e função histórica do passado.

O novo propósito é mercadológico: a estetização reconfigura e introduz mudanças para vender mais, e não mais para mudar o mundo ou a vida das pessoas; o foco é ampliar o consumo nas massas, expandindo seus domínios colossais, na mesma proporção dos lucros e resultados desejados. Tudo em nome da valorização da experiência contemporânea do valor estético.

A vida estetizada só reconhece valor e importância no individualismo distinto e belo, presumidamente belo. Há controvérsias nessa apreciação de gosto e mal gosto: produtos e serviços que guardavam sua essencialidade e sentido em características próprias e originais, hoje se misturam numa necessidade de compartilhamento e demonstração de exclusividade em redes de vidas estetizadas e superficiais; turismo não é mais paisagem contemplação ou descanso, muito menos conforto, é diferenciação e vaidade; gastronomia não é mais sabor, e sim experimento, ciência e fumaça; casa não é lar, é compartimento e arrojo, tamanho e altura; roupa não é mais vestir há muito tempo, mas isso renderá um outro artigo, por certo.

Na era do hiperindividualismo, perdemos a poesia e ingenuidade das coisas e gestos; casas sem janelas, para serem exclusivas e cobiçadas, prêmios de arquitetura como fonte de felicidade, a superespecialização e valorização desses canais de diferenciação mudaram a ordem de tudo e não reconhecemos mais a singularidade nem mesmo em profissões tradicionais: os jardineiros se tornaram paisagistas; os cabeleireiros, hair designers; os cozinheiros, criadores culinários; os joalheiros, artistas joalheiros; os costureiros, diretores artísticos; homens de negócios, artistas visionários, e etc., e etc., e etc.

Novo mundo, capitaneado por um novo capitalismo que se implementa para construir e difundir uma imagem artística de seus novos entes? Para artealizar as atividades econômicas? Para atenuar a ferocidade de suas tramas?

A arte se tornou assim, um instrumento de legitimação dessas novas marcas e formatos do novo capitalismo imaterial que descobrimos agora, origem de uma nova fase, transformação e ruptura, mas certamente sobreviveríamos à superficialidade do inútil e frívolo, reconhecendo o inestimável valor do imprescindível e belo, sempre.

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