Em um almoço em família, a neta diz à avó: “Tenho vários amigos que têm o sonho de te conhecer”. A idosa logo responde: “Ih, não quero conhecer nenhum deles. Deve ser tudo maconheiro!”. A reação causa um misto de espanto e risadas.
Em outra situação, a idosa usa uma máscara de pano no quarto, enquanto está deitada fazendo uma ligação. A neta chega e questiona: “Por que você está de máscara (em casa), vó?”. A idosa responde que havia atendido um rapaz na porta de casa pouco tempo atrás e, irritada, vocifera palavrões ao contar que está no telefone tentando falar com um atendente de uma empresa.
As duas cenas em família ilustram situações vividas pela universitária Luisa Junger, de 23 anos, e a avó, a professora aposentada Dalva Junger. Os momentos, registrados pela neta em vídeos, agora são recordações de família. Em setembro passado, a idosa de 81 anos morreu em decorrência da covid-19.
Após o falecimento da avó, Luisa decidiu compartilhar alguns registros de Dalva no TikTok. “Minha avó foi vítima da covid-19, mas me deixou um acervo de vídeos incríveis”, escreveu a jovem na rede social.
Na legenda de um dos vídeos, a universitária explica que criou o perfil no TikTok para “compartilhar e espalhar alegria, como ela (Dalva) fazia em vida”.
As publicações agradaram muitos usuários da rede social. Um dos vídeos (o da máscara de pano no quarto) teve mais de 3 milhões de visualizações e 267 mil curtidas. “Muitas pessoas sempre pedem para postar mais coisas dela”, diz a jovem à BBC News Brasil.
A avó materna
Mãe de quatro filhas e avó de três netos, Dalva foi professora durante três décadas. Moradora da cidade do Rio de Janeiro (RJ), onde vivia em um apartamento com uma das filhas, a idosa era considerada muito ativa: gostava de passear, dirigir e frequentar academia.
A personalidade da idosa era uma de suas características mais marcantes. “Era daquele jeito que aparece nos vídeos. Ela respondia ‘na lata’, não importava para quem fosse”, diz Luisa.
Dalva ficou isolada no início da pandemia, conta a neta. A família precisava convencê-la com frequência sobre a importância de evitar sair do apartamento.
Em alguns dos vídeos que a neta registrou, é possível notar que a idosa era fiel seguidora do presidente Jair Bolsonaro. Ela o defendia com frequência quando via alguma crítica. “Ela acreditava em tudo o que ele falava”, diz Luisa.
Desde o início da pandemia, o presidente adota um discurso para tentar minimizar os riscos da covid-19, como críticas ao uso de máscaras ou a defesa de tratamentos médicos que não têm respaldo científico, como a cloroquina. “No início da pandemia, a minha avó até podia duvidar da covid-19 por causa do presidente, mas depois foi entendendo os riscos”, diz a jovem.
A idosa costumava acreditar em diversas fake news sobre a covid-19 e compartilhava os conteúdos no WhatsApp. ” A gente tinha que explicar para ela que era mentira”, comenta Luisa.
A jovem relata que a aposentada sempre seguiu os cuidados para se prevenir da covid-19. “Penso que se a gente não explicasse para a minha avó sobre as fake news, essas mentiras poderiam ter tido um impacto negativo para ela”, diz.
Em junho, Luisa e uma tia contraíram a covid-19 e desenvolveram sintomas leves. Na época, elas não tiveram contato físico com Dalva. Para a jovem, os dois casos na família fizeram com que a aposentada passasse a acreditar ainda mais na importância de adotar cuidados contra o coronavírus.
Segundo Luisa, a idosa passou a ter mais dificuldades para ficar em casa quando as medidas de isolamento social no Rio de Janeiro começaram a ser cada vez mais flexibilizadas. Em agosto, Dalva voltou a ir à igreja com frequência. “A minha avó era católica e muito religiosa. Quando as missas voltaram a ser presencialmente, não conseguimos segurá-la em casa”, diz a neta.
“Ela dizia que todo mundo estava saindo, não era prisioneira e que estava tomando todos os cuidados. A minha avó não queria ficar trancada em casa. Mas quando saía, ela sempre usava máscara”, comenta Luisa.
No começo de setembro, a idosa apresentou os primeiros sintomas da covid-19. A família afirma não saber como Dalva contraiu o vírus, mas tem duas hipóteses: na igreja ou de parentes que também foram infectadas.
A igreja, segundo a família, orientava que os fiéis adotassem o distanciamento entre si e usassem máscaras. Ainda assim, os parentes avaliam que o local pode ter sido uma possível fonte de infecção para a idosa, por ser um lugar fechado em que havia diversas pessoas.
“Outra possibilidade é que ela tenha pegado da minha tia ou da minha irmã. As duas tinham voltado a trabalhar presencialmente, mantinham contato com a minha avó e também contraíram o vírus. Mas não sabemos quem pode ter passado para quem. Até hoje temos nossas dúvidas sobre como a minha avó pode ter contraído (o coronavírus)”, explica a jovem.
Enquanto os familiares tiveram sintomas leves, a situação de Dalva logo se agravou. Ela começou com febre e sintomas de gripe. A idosa foi internada em quatro de setembro em um hospital particular da capital fluminense, após um monitoramento apontar que o nível de saturação do oxigênio no sangue dela estava caindo cada vez mais — situação típica de casos mais graves da covid-19.
A primeira tomografia apontou que 25% dos pulmões da idosa estavam comprometidos pelo coronavírus. Quatro dias após ser internada, a situação piorou ainda mais e ela foi intubada. A família recebia informações sobre Dalva duas vezes ao dia: às 10 da manhã e às 10 da noite.
A solidão no hospital, situação recorrente em casos de covid-19, preocupava a família. “Desde que foi internada, a minha avó ficou sozinha, sem celular, sem contato com a família ou qualquer coisa que pudesse distrair. Isso pode ter sido bastante difícil para ela naquele momento, principalmente porque a minha avó ficava no celular o tempo todo”, diz Luisa.
A situação da idosa, que tinha pressão alta e pré-diabetes, piorou cada vez mais. Na manhã de 18 de setembro, ela não resistiu às complicações da covid-19.
“É tudo muito difícil. Toda vez que a gente lembra dela, cai no choro. Ela era muito presente em nossas vidas. Mas a gente tem certeza de que ela está bem agora. A minha avó era muito ativa, com certeza não queria ficar debilitada em uma cama e sofrendo. Ela não suportaria isso”, afirma Luisa.
A jovem era a neta mais nova de Dalva. As duas moravam no mesmo prédio e tinham contato frequente. “A minha avó foi a pessoa que eu mais amei em toda a minha vida. Até os meus pais tinham ciúmes e falavam que quando ela morresse eu não teria outra igual na minha vida. A gente tinha uma ligação muito forte”, comenta a universitária. Duas semanas depois de perder a avó, ela tatuou o nome de Dalva na costela.
Os vídeos no TikTok
Cerca de um mês após a morte da avó, Luisa decidiu compartilhar no TikTok alguns vídeos que havia feito da idosa.
Nos últimos anos, a neta havia publicado no Instagram diversos vídeos da avó. Os amigos de Luisa costumavam dizer que queriam muito conhecer a idosa. “Eles gostavam dos vídeos dela e pediam para postar cada vez mais. Diziam que ela alegrava o dia deles. Eles achavam o mau humor dela engraçado”, diz.
“Eu adorava perturbar a minha avó, porque ela era muito esquentadinha e logo xingava”, comenta Luisa.
No Instagram, os vídeos de Dalva eram vistos por amigos ou familiares de Luisa. Porém, quando a jovem decidiu postar no TikTok após a morte da avó, as publicações ganharam um grande alcance.
“Comecei postando somente para amigos no TikTok. Mas logo tomou uma proporção muito grande, porque muitos desconhecidos começaram a ver. Até mesmo pessoas que foram alunas da minha avó no passado viram os vídeos e comentaram sobre ela”, diz a universitária. “Foi uma repercussão muito boa. Adoro responder as pessoas e as mensagens”, acrescenta.
Atualmente, o perfil da jovem no TikTok tem 40,7 mil seguidores e os vídeos acumulam, juntos, 726 mil curtidas. Nos comentários, muitos relatam que se divertem com o jeito espontâneo da idosa.
“Não esperava que os vídeos da minha avó pudessem chegar a tantas pessoas. Mas eu sempre falava para ela: ‘vó, você tem que ficar famosa, porque é muito engraçada’. Ela respondia: ‘para de bobeira'”, diz Luisa.
A jovem relata que a família gosta do sucesso dos vídeos de Dalva. “Eles riem juntos e sabem da repercussão. Ninguém nunca foi contra publicar esses vídeos”, relata.
Ela afirma que a avó também gostava de ser filmada. “Ela dizia que não queria fazer os vídeos. Mas no fundo, ela gostava e acabava topando gravar”.
A jovem não pretende, ao menos por enquanto, parar de compartilhar os momentos com a avó. “A quantidade de vídeos dela é limitada. Mas enquanto tiver conteúdo, pretendo continuar postando qualquer coisa que me lembre dela”, diz.
Para Luisa, os vídeos no TikTok representam uma forma de homenagear Dalva. “Eu posto porque me dá prazer ver as pessoas se divertindo com ela. Sinto que assim não estou deixando a imagem da minha avó ser esquecida de jeito nenhum”, comenta.
Fonte: BBC News Brasil